Choveu, de madrugada, e a rua onde vivo tem pequenos charcos que refulgem ao sol da manhã. Acordo normalmente cedo e gosto de ver o movimento das pessoas, encaminhando-se para os seus destinos certos. Quando era rapaz e trabalhava de dia para estudar à noite, utilizava o carro eléctrico operário, sempre cheio de uma gente sonolenta e triste, que mal sorria. O carro eléctrico operário funcionava até às 7.30, e os vidros das janelas embaciavam-se com a respiração das pessoas. O bilhete era azul e longo, para se distinguir dos normais, e permitia ida e volta por sete centavos e meio. Iam lá muitas varinas, e as canastras podiam ser colocadas na retaguarda. Poucos falavam entre si. Hoje, recordo que iam acabrunhados e experimentados na rotina trágica que concentrava quem viajava no carro operário. As imagens vão desfilando, e há inúmeras delas que sempre me acompanharam. As vozes e os rostos é que já se perderam, e tenho pena. A minha avó, por exemplo, que também utilizava o operário, como era a voz dela?
Porque me lembrei dela? Talvez porque os meus dois netos, o Francisco e o Manuel, vêm passar cá a tarde. Dia em que só ligamos a televisão para o canal Panda, e eu livro-me de recapitular as caras medonhas destes que tais, que moldam o meu presente, talvez o futuro dos meus netos, e me assustam porque não sei como deles me livrar. A Isaura diz-me: "Não te apoquentes tanto. As coisas mudam e nem sempre isto será assim."
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