Footprints - Praia do Castelejo, Vila do Bispo, Algarve

sábado, 27 de outubro de 2012

Fantasia sobre um velho tema



Mora-me um poeta
Que tento esconder,
A ver
Se poderei ser
Como toda a gente.

Abri os meus alçapões,
E no último desvão
O fechei a pão e água,
Com grilhões,
E uma corrente...
(... a ver se poderei ser
Como toda a gente).

Depois, saí para a rua,
Todo aprumado,
Escovado,
Dado a ferro,
Satisfeito:
Porque em verdade, julgava
Que a multidão que girava
Pensava
De mim
Assim:

- "Ali vai um homem
  Tão decentemente
  Que, naturalmente,
  Nada deve ter
  Que nos esconder..."

Delirantemente,
De mim para mim,
Eu pensava assim:

- " Ser como essa gente!
  Ser bem menos gente!
  Ser mais toda-a-gente
  Que toda essa gente!"

Sim,
Raivosamente,
Eu pensava assim.

... Tanto mais raivosamente
Quanto, dos longes de mim,
Do fim
Do derradeiro alçapão,
O Poeta emparedado,
Esfaimado,
Encadeado,
Cantava a sua prisão:

- " Se aqui me fecharam,
   Foi porque não posso
   Debulhar o osso
   Que me arremessaram...

   Foi porque os desperto,
   De noite e de dia,
   Com  a chama fria
   Do meu gládio aberto...

   Foi porque a pobreza
   Que fiz meu tesoiro
   Tem muito mais oiro
   Que a sua riqueza...

   Foi porque horas mortas,
   Indo no caminho,
   Lhes bati às portas,
   Mas segui sozinho..."

Eu pensava:

  - " Sim, realmente,
     Se te fechei, foi a ver
     Se poderei ser
     Como toda a gente..."

E baixinho,
Recolhido sobre mim
Como um bichinho-de-conta,
Eu cantava-lhe também,
Recolhido sobre mim,
Cantigas de adormentar:
Cousas de pai, ou de mãe,
Que cantam para embalar...

Assim:

 - "Durma um soninho comprido
   No seu bercinho deitado,
   Que o papão foi enxotado,
   E eu não deixo o meu querido...

   Durma um soninho alongado,
   No seu bercinho estendido,
   Que eu não tiro do sentido
   Velar o meu adorado..."

E assim, com tudo isto ao peito,
- Um doido e seu alçapão -
Eu seguia satisfeito:
Porque em verdade, julgava
Que a multidão que girava
Pensava
De mim
Assim:

  - "Ali vai um homem
    Tão decentemente
    Que, naturalmente,
    Nada deve ter
    Que nos esconder..."

Como era que, de repente,
Nos olhos de quem passava
(Um qualquer)
Imaginava
Ver debruçar-se a acusar-me
Um colosso...,
Um poeta inofensivo
Com ferros nos tornozelos,
Nos pulsos,
E no pescoço?

Ai, campainhas de alarme
Sob dedos de outro mundo...!

E nem sei como
Transtornado até ao fundo
Dos meus alçapões recônditos,
Melodramaticamente,
Eu avançava
De braços todos abertos
Para o qualquer que passava.

Então,
Diante de mim, agora,
Qualquer, e não sem razão,
(Qualquer grosseirão)
Parava, ria,
Dizia
Que eu era doido varrido...

E, corrido,
Eu desatava a correr.

A multidão
Detinha-se para ver
Este senhor bem vestido,
Com bom ar e belos modos,
A fugir, como um perdido,
Ante o pasmo dos mais todos!

Sarcasta,
Bem lá do fundo
Do alçapão derradeiro,
O meu Cativo cantava
O timbre da sua casta:

 - "Sou como um grito de alarme
    Sobre as tuas sonolências.
    Preencho as tuas ausências
    Com a presença de Deus...

    O som dos teus escarcéus,
    Redu-lo a silêncio e a espanto
    O murmúrio do meu canto
    Nos teus ouvidos impuros...

    Quero-te! e não são teus muros
    Que hão-de impedir que te enlace,
    E que te queime a boca e a face
    Com meu ósculo de fogo...

    Que trapaças de que jogo
    Inventarás por vencer-me,
    Se te rojas como um verme
    Sem as asas que te hei sido?

    E é de tal modo perdido
    O afã de me combater,
    Que é teu supremo vencer
    Não vencer - mas ser vencido..."

... Cantava.
Mas eu, aos poucos,
Subjugava
Meus nervos loucos:
Retomava,
Da minha lista de cor,
Qualquer pomposa atitude...
Por exemplo: a de senhor
Fundador,
Ou benfeitor,
De associações de virtude.

E seguia
Com decência e autoridade,
Enquanto com desespero,
Com crueldade,
Com ódio,
Com soluços de paixão,
Gritava lá para dentro
Do derradeiro alçapão:

 - "Não!...,
    Não penses
    Que te pode ouvir alguém!
    Ouço-te eu; e mais ninguém!
    Mas eu não te soltarei,
    Nem deixarei
    Que parem à tua porta.
    Hei-de ter-te emparedado,
    Carregado
    De correntes;
    E, por uma noite morta,
    Hei-de entrar, como um ladrão,
    E hei-de te cravar os dentes
    No lugar do coração;
    E hei-de te arrancar a língua;
    E hei-de te queimar os olhos;
    E hás-de ficar cego e mudo;
    E assim,
    À míngua
    De tudo,
    Te hei-de deixar
    A agonizar por três dias...
    Então,
    Hei-de compor elegias
    À tua morte:
    Elegias académicas,
    Sonoras,
    Metafóricas,
    Retóricas,
    Feitas com todo o recorte,
    Com toda a morfologia,
    Com toda a fonologia,
    Com toda a sabedoria
    De versos caindo iguais,
    Como um relógio a dar ais
    À hora do meio-dia!
    Depois, hei-de conservar
    O teu coração escuro
    Triturado
    Por meus dentes,
    Hei-de o conservar, pintado,
    Retocado,
    Envernizado,
    Num frasco de cristal puro...

    Para o mostrar às visitas,
    Aos amigos e aos parentes."

Assim falando
Para dentro
Do subterrâneo nefando,
Ia andando
Com aspecto satisfeito,
E direito,
Bem seguro,
Sobretudo, consciente
De estar mesmo a ser, agora,
A parte de fora
(A cal do muro)
De toda a gente...

Assim entro em várias casas,
Através de várias ruas,
Parando ante várias montras,
Cumprimentando
Para um lado, para outro...

Até ficar
Numa qualquer sala
Onde estão sentados
Homens e mulheres
Com um ar de embalsamados.

Criados
Vêm e vão
Com bandejas
Sobre a mão.

Paira, como nas igrejas,
Um fumo de hipocrisia...

Enquanto
A um canto,
Com funda neurastenia,
Um piano faz ão-ão,
Faz ão-ão a toda a gente,
Como um pobre cão doente.

Logo,
Então,
Qualquer menina Marguerite
Me implora que lhes recite
A última produção.

Recuso-me,
Ela insiste,
Vou para o meio da sala,
Tudo se cala,
Sinto-me triste,
Falta-me a fala,
Falta-me a respiração,
E a suar de angústia, rouco,
Debuxando no ar gestos de louco,
Arranco, num grande esforço,
Estas palavras ao Outro...

Palavras
De todo o meu coração:

- "No silêncio total, contemplo-te. Morreu
   A já póstuma luz dos astros mortos, no céu cavo.
   Chegou a nossa hora! A realidade és tu e eu.
   Contemplo-te, senhor!, eu, teu indigno escravo...

   Os teus olhos serenos e cruéis
   Despojam-me de toda a ornamentação:
   E eu tremo, nu, sobre os meus tristes, preciosos ouropéis,
   Nu - e coberto de confusão.

   Lembro as minhas mãos vis, meus olhos lassos,
   E a minha carne murcha, e o meu suor,
   E os meus pés deformados, e as feridas dos meus braços...
   Tem dó de mim!, belo senhor.

   Continuas a olhar-me. Imperturbável,
   O teu olhar transpõe minha nudez.
   E, por mais que a teus pés eu me recolha, miserável,
   A alma dói-me!, porque tu ma vês.

   Como és assim cruel, sendo tão belo?
   Tira de mim o teu olhar, que me tortura,
   Macio e frio como o fio dum cutelo...
   Poupa-me à tua formosura!

  Ah, que martírio
  Ter-te sempre tranquilo, grande, belo,
  Posto em frente de mim, que sou delírio,
  Ranger de dentes pouco sãos, riso amarelo...!

  Vai-te da minha vista, meu amado!
  Chama por mim o chão de que sou digno.
  Deixa-me resignar-me! Estou cansado.
  Só por pudor de ti me não resigno...

  Deixa-me ir ver, lá em baixo, os saltimbancos,
  Gozar o vil ballet que sobe à cena.
  Deixa-me ir ocupar o meu lugar nos bancos,
  Exibir o meu número na arena!

  Deixa-me ser vulgar!
  Pois se não posso ser o que tu és,
  Por que assim me agarrar, e rastejar,
  Como um grilhão, aos teus pés?

  Triste impotente, em vão, dentro de mim, grito estes gritos:
  Olho-te..., e quedo nu e mudo,
  Porque os teus olhos nítidos e fitos
  Se me antecipam a tudo.

  E eu sei que não te irás, nem eu irei.
  Pesa sobre nós dois a mesma condição:
  Que eu nasci servo dos teus pés de rei;
  Tu, pobre rei!, servo da minha servidão."

Calo-me, aflito.
Em roda,
Com um ar comprometido,
Dizem que sim, que é bonito.
Tangendo as pontas dos dedos,
Dão-me palmas
Com um meneio entendido
Das frontes estupefactas...
E a menina Marguerite,
Levantando as omoplatas,
Baixa, lânguida,
As pálpebras timoratas
Sobre a fímbria do vestido.

Ah!, eu sei!
Sei que ninguém compreeendeu,
Nem podia compreender,
O meu combate de amor:
Este diálogo entre mim e eu.

E arrumado para um canto,
Como o piano,
Gozo onanisticamente
A glória de ser vencido,
Gritando ao meu tal Demente
Lá no seu fundo escondido:

 - "Venceste, porque és maior!
    Porque tinhas de vencer!
    Porque eu sou fraco,
    Pois que te não posso ter
    Calado no teu buraco!
    Eu, afinal,
    Sou uma triste mistura
    De ousadia e cobardia.
    Sou tu e eu...,
    Sou banal!
    Nem sou pele nem carne viva,
    Não sei subjugar nenhum,
    Padeço de alternativa,
    Nunca me atinjo só um!"

...Enquanto ao lado, de esguelha,
Falando para um sujeito
Debruçado, como um cuco,
Sobre o seu ombro perfeito,
A dona de um alto peito
E duma boca vermelha
Diz:

 - "Não parece antipático!
    Não..., só maluco.
    Talvez um pouco lunático..."

E eu, sentindo-me ridículo
Com o meu ar sorumbático,
Vou fechar-me num cubículo
Onde não haja ninguém,
E aonde a voz do Arcanjo preso
Lá dos fundos, alta, vem:

 - "Por que me renegas, se eu é que sou Um,
    E em te desdobrando, tu não és nenhum?

    Por que me recusas, se não há batalha
    Que, sem mim ganhada, possas crer que valha?

    Por que deles todos me escondes aqui,
    Se eu é que os sou todos, e te sou a ti?

   Por que só exibes, sobre o teu portal,
   Vis máscaras minhas...?"

              Etc. e tal.

José Régio, 
As Encruzilhadas de Deus 

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